quarta-feira, 6 de março de 2013

Paraíso particular


Deste lado de cá, as pessoas não choram, pois sempre souberam que a morte era o momento mais sublime da vida e ansiaram tanto por esse ínfimo instante de transição.

O acordeão desperta o sono.

A lira faz você sorrir.

A flauta ensina os passos.

E o piano faz a gente dormir.


Aqui as plantas são verdes; pode-se ouvir a respiração das folhas; os pássaros gorjeiam como uma orquestra cintilante, somando ritmo à harmonia da vida por aqui passageira.

E as pessoas não choram, pois sabem que, daqui, partirão para outras viagens. As bagagens são desfeitas e refeitas na hora certa.

Dividem os frutos maduros, enquanto esperam, pacientes, os verdes corarem.

O amanhecer revigora os insetos contentes, ainda que não aparentes, que vagueiam as alamedas infestadas de barracas de acampamento com céus projetados nos tetos, pelos quais estrelas dissecam-se.

Mas aqui as pessoas não choram. Elas esperam a hora de seguir em frente, sem se despedir, porque sabem que vão se encontrar quando acordar. Aqui ou lá.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Por amar demais


Um homem, que não era livre, mas tornou-se ao fim, passou por um dilema desafiador: ser feliz ou não. Ou não.  Com: uma mulher, que não era livre, mas tornou-se no fim – carregava consigo um machado mágico – ceifou os sonhos daquele que mantinha preso aos seus pés. Negou-lhe poderes, obrigou-o a amá-la, fez da vida um fiapo de linha.

Nas tarde de domingo, sentavam-se à beira de si, juntos, para esgarçarem o peito, encherem-no de interrogações e se embriagarem de fel. O movimento contínuo das lágrimas caindo abriu a brecha que, visto por fora, podia-se enxergar a angústia de viverem enclausurados.

As flores colhidas no campo pelo rapaz faleciam em dor nas mãos da moça, que, por sua vez, amarravam-nas como adornos em si. O sorriso machucado dele fora escondido diversas vezes com as mordaças da ignorância dela.

Ela era o pesar e ele, o amor rejeitado.

Certo dia, sentados no córrego, ele disse:

- Quero ser feliz.

E ela indagou:

- Você não quer ser mais meu?

E ele, mais uma vez:

- Quero ser feliz. Mas, sendo assim, você nunca será feliz também. Ou eu ou você! Ver-te presa a mim, faz a liberdade se afastar como nessa corredeira de águas borbulhentas...

- Mas você pertence a mim e...

Interrompeu-a:

- Não posso ser quem sou, porque pertenço a ti e...

- Eu te amo do meu jeito!

- Eu te amo com limites!

E uma súbita ação: empurrou-a no córrego. Ela não sabia nadar. E foi-se sem ele aos seus pés.

Com angústia e satisfação, ele gritou-lhe: Amo você, mas optei por ser livre e feliz.

E assim o foi.


domingo, 2 de dezembro de 2012

Verde-vermelho


Numa tarde de fim
verão florido e animal
cantavam em bosques
príncipes e fadas
e de repente eram árvores
e gaviões
vento turvo e feroz
mas a natureza se recusara
a amamentar do leite frio
sonoro, lúgubre
singela pedra, o corpo sujo.

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domingo, 4 de novembro de 2012

Amor ao inimigo


Queria ser teu corpo
Dominar seu sangue
Rasgar-te vivo e liso
Dentro.
E você ser eu
Bater-me a boca
Com o vendo escaldante
Frente com frente
Rolar nas ruas grossas
Debatendo, batendo, tendo
Tudo o que não suporto em ti
E por isso quero ser-te
Por uma noite de lua cheia, vazia
De nós
Que me enxerga e me devora
Que é tão imensa longe
Mas, perto, é chão.
Sinta-me. Sinto-te.
Beija-me-você
Devolva-me o gosto ruim
Dessa boca vil.
Não suportei.
Quando a luz chegar
Por dentro
Serás madeira talhada
E podre
Assinada por mim.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Faróis da vida


[Dedicado aos amigos marítimos]

Vento bravo, eis-me aqui,
Força plena de Poseidon
Que os oceanos enaltece,
Para girar o fiel timão.

Estufo o peito como as velas,
Piso o convés, faço oração
Ouço firmes os motores
Máquinas vivas, coração.

Pode fincar n’areia
As lágrimas, o barco, a saudade
Se quiser singrar os mares
Sem enfrentar as tempestades.

Minh’alma e do navio
Entrelaçam-se no cais
Onde esperam-me amores
Faróis da vida, meus sinais.



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sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A-deus


Viajei por muitas horas para visitar um grande amigo, que me aguardava em sua mansão. Ele havia se tornado um homem empreendedor, reconhecido pelas suas habilidades e carisma. Receber-me-ia para matar a saudade da infância, da adolescência, dos tempos de colégio e dos últimos momentos que estivemos juntos, antes de partir em busca de seus objetivos.

Ao chegar, permaneci vislumbrado com o paraíso que o cercava. Tudo tinha mudado em sua vida. Meu humilde amigo se tornara um poderoso indivíduo na sociedade, com direito às regalias mais fúteis que poderia ser preparada aos seus pés. Agora, com 33 anos, a soberba havia lhe serpenteado.

No jardim do palácio havia crianças inquietas correndo sem direção, por entre as estatuetas de famosos imperadores do mundo. No saguão de entrada, recebia-me de braços abertos um personagem num quadro pintado detalhadamente: era ele, o cara que cresceu comigo. Mas seu semblante transbordava soberba, capaz de intimidar quem fosse incomodá-lo.

Na sala, duas escadas posicionadas simetricamente nas laterais confundiam os lados que eu deveria seguir. Luzes fortes no centro; não reparei mais nada nesse cômodo, além dos degraus. Subi pelo lado que minha intuição indicava, até chegar num corredor longo, repleto de vasos de rosas amarelas. Ouviam-se gargalhadas distantes, aproximando-se à medida que meus passos pesados fincavam o chão. Lá no fim do corredor ficava o salão nobre.

Para a minha surpresa, chamou onze sócios em sua casa, todos me receberiam no jantar. Na mesa, cabiam doze. E o meu assento me esperava de frente para o anfitrião, como uma baixa meretriz seduz um homem. Sentei-me, meio contrariado, devido ao excesso de elegância pressionada pelos lustres e tapetes caros sob meu queixo.

Os caras cochichavam a meu respeito, sem a pretensão de disfarçar tal indelicadeza. Cochichavam com meu amigo, agora outra pessoa. Mais gargalhadas, cada vez mais altas! Suas taças brindavam a arrogância, o chacoalhar dos vinhos arranhava minha mente. Meu sorriso era forçado bastante, enquanto minhas mãos esmagavam-se de ódio por baixo do pano.

Minha presença se tornara cada vez menor, desprezível, ao ponto de, por breves instantes, ignorarem-me. Mesmo assim, engolia secos aqueles homens pedantes. Passavam pratos e talheres, as conversas fúteis, a minha vontade de estar ali, as horas. As serventes eram debochadas, depravadas, salientes. Da copa, vinham mulheres robustas e encorpadas nos servir mais de luxúria do que da culinária.

Após a refeição, seus sócios participaram de um ritual estranhíssimo. Ajoelharam-se aos pés do chefe, agradecendo-lhe o convite. Enquanto isso, a figura enaltecida gabava-se, pedindo mais adulação. Que cena grosseira! Fui obrigado a me ajoelhar com eles. Olhando nos seus olhos – olhos vazios e irônicos que me desarmavam – fui descendo, até me juntar com seus subordinados.

Cuspiu meu rosto.

Todos riram do acontecido e aplaudiram seu Mestre. Passei a mão na sua saliva que escorria pegajosa, olhei ao meu redor e levantei-me. Saí do cômodo, caminhei o corredor infindável, desci a escadaria correndo, passei pelas crianças, filhas das serventes seminuas, que tropecei, agarrando-se no jardim, passei pelo portão sem trancá-lo. Parei ofegante do lado de fora. Virei para olhar a casa e fitei, através da janela, seus olhos vermelhos à espreita.

Caminhei até a esquina e, sem que me notassem, sumi num trovão estrondoso. No caminho, refleti que a humanidade não está preparada para receber nenhum deus que seja. Eu havia me tornado um deus e vinha salvar a humanidade. A esperança morreu, foi a última. Adeus a deus.


sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Enquanto o papel queimava


Enquanto o papel queimava
Pensava em nós amantes
No barulho da chama acesa
Que consumia nossos braços.


Enquanto o papel queimava
O desejo de beijar seus olhos
Passeava na minha paz
E furtava minhas sensações abstratas.


Enquanto o papel queimava
O gosto poético dos seus beijos
Hipnotizava minha canção
De amor infinito, ainda que vivo.


Enquanto o papel queimava
Sentia os resquícios da paixão
Outrora fulminante e fiel
Que pairava no ar asfixiante.


Enquanto o papel queimava
O corpo vil dessa terra
Contorcia-se de amargura
E, puramente, mergulhava fundo.


Enquanto o papel queimava
Mão e pés adormeciam
As palavras secavam
O coração ruía.


Enquanto o papel queimava
Lágrimas ardiam o peito
Dilaceravam a face
Molhavam o vão.


Enquanto o papel queimava
Meu amor morria junto da chama acesa,
Das cinzas densas, da minha lucidez, de você.
Enquanto o papel queimava nas minhas mãos.