sexta-feira, 26 de outubro de 2012

A-deus


Viajei por muitas horas para visitar um grande amigo, que me aguardava em sua mansão. Ele havia se tornado um homem empreendedor, reconhecido pelas suas habilidades e carisma. Receber-me-ia para matar a saudade da infância, da adolescência, dos tempos de colégio e dos últimos momentos que estivemos juntos, antes de partir em busca de seus objetivos.

Ao chegar, permaneci vislumbrado com o paraíso que o cercava. Tudo tinha mudado em sua vida. Meu humilde amigo se tornara um poderoso indivíduo na sociedade, com direito às regalias mais fúteis que poderia ser preparada aos seus pés. Agora, com 33 anos, a soberba havia lhe serpenteado.

No jardim do palácio havia crianças inquietas correndo sem direção, por entre as estatuetas de famosos imperadores do mundo. No saguão de entrada, recebia-me de braços abertos um personagem num quadro pintado detalhadamente: era ele, o cara que cresceu comigo. Mas seu semblante transbordava soberba, capaz de intimidar quem fosse incomodá-lo.

Na sala, duas escadas posicionadas simetricamente nas laterais confundiam os lados que eu deveria seguir. Luzes fortes no centro; não reparei mais nada nesse cômodo, além dos degraus. Subi pelo lado que minha intuição indicava, até chegar num corredor longo, repleto de vasos de rosas amarelas. Ouviam-se gargalhadas distantes, aproximando-se à medida que meus passos pesados fincavam o chão. Lá no fim do corredor ficava o salão nobre.

Para a minha surpresa, chamou onze sócios em sua casa, todos me receberiam no jantar. Na mesa, cabiam doze. E o meu assento me esperava de frente para o anfitrião, como uma baixa meretriz seduz um homem. Sentei-me, meio contrariado, devido ao excesso de elegância pressionada pelos lustres e tapetes caros sob meu queixo.

Os caras cochichavam a meu respeito, sem a pretensão de disfarçar tal indelicadeza. Cochichavam com meu amigo, agora outra pessoa. Mais gargalhadas, cada vez mais altas! Suas taças brindavam a arrogância, o chacoalhar dos vinhos arranhava minha mente. Meu sorriso era forçado bastante, enquanto minhas mãos esmagavam-se de ódio por baixo do pano.

Minha presença se tornara cada vez menor, desprezível, ao ponto de, por breves instantes, ignorarem-me. Mesmo assim, engolia secos aqueles homens pedantes. Passavam pratos e talheres, as conversas fúteis, a minha vontade de estar ali, as horas. As serventes eram debochadas, depravadas, salientes. Da copa, vinham mulheres robustas e encorpadas nos servir mais de luxúria do que da culinária.

Após a refeição, seus sócios participaram de um ritual estranhíssimo. Ajoelharam-se aos pés do chefe, agradecendo-lhe o convite. Enquanto isso, a figura enaltecida gabava-se, pedindo mais adulação. Que cena grosseira! Fui obrigado a me ajoelhar com eles. Olhando nos seus olhos – olhos vazios e irônicos que me desarmavam – fui descendo, até me juntar com seus subordinados.

Cuspiu meu rosto.

Todos riram do acontecido e aplaudiram seu Mestre. Passei a mão na sua saliva que escorria pegajosa, olhei ao meu redor e levantei-me. Saí do cômodo, caminhei o corredor infindável, desci a escadaria correndo, passei pelas crianças, filhas das serventes seminuas, que tropecei, agarrando-se no jardim, passei pelo portão sem trancá-lo. Parei ofegante do lado de fora. Virei para olhar a casa e fitei, através da janela, seus olhos vermelhos à espreita.

Caminhei até a esquina e, sem que me notassem, sumi num trovão estrondoso. No caminho, refleti que a humanidade não está preparada para receber nenhum deus que seja. Eu havia me tornado um deus e vinha salvar a humanidade. A esperança morreu, foi a última. Adeus a deus.


Nenhum comentário: