domingo, 23 de setembro de 2012

A mulher de burca


Nas férias de fim de ano, embarquei rumo a Swat, no Paquistão, em busca de fomentos para o livro que escrevi sobre a condição feminina e os neotalisbãs. Antes de partir, marquei um encontro com uma jornalista censurada que fornece informações sobre a vida no país islâmico. Mas tudo foi cautelosamente tratado, pois as regras continuam rígidas para as mulheres daquele lugar: não podem sair sem a escolta de um homem, não tem acesso à escola, nem à saúde digna. E o mais grave: andam cobertas de véu, da cabeça aos pés. As pessoas não as conhecem senão como um monte de tecidos disformes.

Combinamos no hotel que permaneci hospedado. Obviamente, ela compareceu acompanhada do irmão, apoiador do seu trabalho.

Quando chegou, fiquei sem jeito para tocá-la. Não soubemos como proceder e, então, cumprimentamo-nos apenas com um “olá”. Simpática, a moça pediu ao irmão que desse uma volta pelo quarteirão. Ela estava disposta a me ajudar!

Vê-la – ou não vê-la – sob panos causava em mim um incômodo ácido durante a conversa. Só era possível ver a sombra dos olhos e a pontos dos dedos.

Por uns minutos, tentei organizar todas as perguntas embaralhadas em minha cabeça por causa da sua imagem perturbadora.

– Como te sentes embaixo desse traje? – essa foi a pergunta que me veio primeiro.


A moça inclinou a cabeça, como quem olha para baixo.

– Nunca tive a oportunidade de vestir algo diferente. Meu pai sempre me obrigou a usar a burca, assim como a minha mãe. Não temos o prazer da vaidade. – respondeu-me com naturalidade.

Pensei que era comum tratar desse assunto e responder as mesmas indagações.

Depois disso, discutimos sobre uma avalanche de assuntos que envolvia terrorismo, autoridade, religião e direitos humanos. As palavras que saiam de sua boca – eu era capaz de imaginar – eram secas, sem emoção, porque também eram proibidas de expor seus sentimentos. Ou seja, não podiam sequer demonstrar afeto a alguém.

Perguntei-lhe sobre relacionamentos.

“A mulher é humilhada pelo homem; às vezes me sinto como uma cadela presa a uma coleira, latindo por comida e atenção”.

Eu sabia que esse “às vezes” foi tantas vezes frequente. Para aquela mulher sentada a minha frente, a vida não revelava o menor sentido. Seus sonhos foram banidos pela raiz, sua sensibilidade era abafada, sua beleza... Ah... Essa ninguém conhecia!

Em um momento, interrompeu o assunto para ir ao lavabo. Demorou alguns minutos. Voltou e sentou-se novamente.

E o silêncio de novo: havíamos quebrado a linha de pensamento.

O mistério daquela moça era um fascínio. Eu queria sentir a textura da sua pele, olhar nos seus olhos e descobrir a verdade que ofuscava seu passado.

Peguei sua mão. Que mão leve e sedosa! Mão de quem nunca apedrejou.

Insinuei beijá-la, como um cortejo de um Barão a uma Dama. Porém, ríspida, ela puxou de volta, enroscando os dedos de uma mão com os da outra. Minha atitude desarmara a mulher!

Singelamente, segurei-a firme, passando pelo meu rosto. Tinha um perfume silvestre e delicado.

Ameacei levantar seu véu do rosto, a espera de alguma reação que desaprovasse minha loucura. Não! Não fui impedido. Os segundo eram longos. Tirei a capa e suas lágrimas rolavam na sinfonia do seu pranto calado.

Olhar profundo que me angustiava, lábios inocentes. A moça era linda demais!

Ao acariciar seus braços, notei cicatrizes estranhar. Todas com forma de coração.

– E essas marcas? – perguntei assustado.
– É o amor à flor da pele! Esse é o meu limite. O amor morre em mim. Cada vontade de amar é um registro que vês. Eu não posso sentir isso, então me castigo.  – respondeu.

Ainda havia uma ferida aberta, estava sangrando. Ela tinha se cortado quando pediu para se levantar. O coração estava vivo pulsando. Era o meu.

A mulher de burca mostrava-se sem mistério.

Choramos juntos. Abraços apertados. Olhos nos olhos; respiração aliviada; vontade de cuidar.
A campainha gelou o momento. Era o seu irmão de volta, visto que não deveriam demorar fora de casa.

Foi-se com um olhar de adeus.

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Meu voo de partida sairia na manhã seguinte. Então chamei um taxi bem cedo para me levar ao aeroporto. A história que vivenciei permanecia nítida na minha cabeça. Mas, confesso, não pretendia esquecê-la! Nem a história, nem a mulher.

Chegando ao aeroporto movimentado, caminhei em direção ao saguão de check-in a fim de agilizar o processo de embarque. No guichê, deparei-me com a jornalista. Minha viagem prometia muitas surpresas, só essa foi marcante.

Ela trajava um suéter preto e uma calça cinza-escuro e um sorriso estampado.

Disse-me que queria fugir comigo para o meu país, pois não suportaria mais viver sob aquele regime. Então veio disfarçada de turista, arriscando a sua vida e a minha, caso nos pegasse.

“Já comprei minha passagem para o mesmo horário que a sua. Precisamos continuar a história que começou aqui. Eu quero ser feliz ao seu lado!”.

E me agarrou e me beijou e reclamou baixinho ao pé do ouvido. A cena nunca fora comum naquele ambiente traiçoeiro.

Partimos sem atraso e com muito entusiasmo.

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Quando chegamos ao meu país, fomos à casa dos meus pais. Eles precisavam conhecê-la, porque eu queria mostrá-la ao mundo inteiro!

Hoje esta bela mulher tornou-se minha esposa e também a capa do livro que foi sucesso no lançamento. Está aqui ao meu lado enquanto escrevo esta experiência.

Ensinei meu idioma. Aprendi a aceitar seus costumes. Tomamos café no fim da tarde, enquanto releio as histórias do livro para ela. São histórias inesquecíveis e repassadas a cada dia.

 O coração, que antes chorava tristeza, me acalenta. Percebi que o amor não pode ser uma cicatriz, porque ele é vivo. Portanto, arrisque-se onde quer que seja!



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Um comentário:

Anônimo disse...

Emocionante!