Nas férias de
fim de ano, embarquei rumo a Swat, no Paquistão, em busca de fomentos para o
livro que escrevi sobre a condição feminina e os neotalisbãs. Antes de partir,
marquei um encontro com uma jornalista censurada que fornece informações sobre
a vida no país islâmico. Mas tudo foi cautelosamente tratado, pois as regras
continuam rígidas para as mulheres daquele lugar: não podem sair sem a escolta
de um homem, não tem acesso à escola, nem à saúde digna. E o mais grave: andam
cobertas de véu, da cabeça aos pés. As pessoas não as conhecem senão como um
monte de tecidos disformes.
Combinamos no
hotel que permaneci hospedado. Obviamente, ela compareceu acompanhada do irmão,
apoiador do seu trabalho.
Quando chegou,
fiquei sem jeito para tocá-la. Não soubemos como proceder e, então,
cumprimentamo-nos apenas com um “olá”. Simpática, a moça pediu ao irmão que
desse uma volta pelo quarteirão. Ela estava disposta a me ajudar!
Vê-la – ou não
vê-la – sob panos causava em mim um incômodo ácido durante a conversa. Só era
possível ver a sombra dos olhos e a pontos dos dedos.
Por uns
minutos, tentei organizar todas as perguntas embaralhadas em minha cabeça por
causa da sua imagem perturbadora.
– Como te
sentes embaixo desse traje? – essa foi a pergunta que me veio primeiro.
A moça
inclinou a cabeça, como quem olha para baixo.
– Nunca tive a
oportunidade de vestir algo diferente. Meu pai sempre me obrigou a usar a burca,
assim como a minha mãe. Não temos o prazer da vaidade. – respondeu-me com
naturalidade.
Pensei que era
comum tratar desse assunto e responder as mesmas indagações.
Depois disso,
discutimos sobre uma avalanche de assuntos que envolvia terrorismo, autoridade,
religião e direitos humanos. As palavras que saiam de sua boca – eu era capaz
de imaginar – eram secas, sem emoção, porque também eram proibidas de expor
seus sentimentos. Ou seja, não podiam sequer demonstrar afeto a alguém.
Perguntei-lhe
sobre relacionamentos.
“A mulher é
humilhada pelo homem; às vezes me sinto como uma cadela presa a uma coleira,
latindo por comida e atenção”.
Eu sabia que
esse “às vezes” foi tantas vezes frequente. Para aquela mulher sentada a minha
frente, a vida não revelava o menor sentido. Seus sonhos foram banidos pela
raiz, sua sensibilidade era abafada, sua beleza... Ah... Essa ninguém conhecia!
Em um momento,
interrompeu o assunto para ir ao lavabo. Demorou alguns minutos. Voltou e
sentou-se novamente.
E o silêncio
de novo: havíamos quebrado a linha de pensamento.
O mistério
daquela moça era um fascínio. Eu queria sentir a textura da sua pele, olhar nos
seus olhos e descobrir a verdade que ofuscava seu passado.
Peguei sua
mão. Que mão leve e sedosa! Mão de quem nunca apedrejou.
Insinuei
beijá-la, como um cortejo de um Barão a uma Dama. Porém, ríspida, ela puxou de
volta, enroscando os dedos de uma mão com os da outra. Minha atitude desarmara
a mulher!
Singelamente,
segurei-a firme, passando pelo meu rosto. Tinha um perfume silvestre e
delicado.
Ameacei
levantar seu véu do rosto, a espera de alguma reação que desaprovasse minha
loucura. Não! Não fui impedido. Os segundo eram longos. Tirei a capa e suas
lágrimas rolavam na sinfonia do seu pranto calado.
Olhar profundo
que me angustiava, lábios inocentes. A moça era linda demais!
Ao acariciar
seus braços, notei cicatrizes estranhar. Todas com forma de coração.
– E essas
marcas? – perguntei assustado.
– É o amor à
flor da pele! Esse é o meu limite. O amor morre em mim. Cada vontade de amar é
um registro que vês. Eu não posso sentir isso, então me castigo. – respondeu.
Ainda havia
uma ferida aberta, estava sangrando. Ela tinha se cortado quando pediu para se
levantar. O coração estava vivo pulsando. Era o meu.
A mulher de
burca mostrava-se sem mistério.
Choramos
juntos. Abraços apertados. Olhos nos olhos; respiração aliviada; vontade de
cuidar.
A campainha
gelou o momento. Era o seu irmão de volta, visto que não deveriam demorar fora
de casa.
Foi-se com um
olhar de adeus.
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Meu voo de
partida sairia na manhã seguinte. Então chamei um taxi bem cedo para me levar
ao aeroporto. A história que vivenciei permanecia nítida na minha cabeça. Mas,
confesso, não pretendia esquecê-la! Nem a história, nem a mulher.
Chegando ao
aeroporto movimentado, caminhei em direção ao saguão de check-in a fim de agilizar o processo de embarque. No guichê,
deparei-me com a jornalista. Minha viagem prometia muitas surpresas, só essa
foi marcante.
Ela trajava um
suéter preto e uma calça cinza-escuro e um sorriso estampado.
Disse-me que
queria fugir comigo para o meu país, pois não suportaria mais viver sob aquele
regime. Então veio disfarçada de turista, arriscando a sua vida e a minha, caso
nos pegasse.
“Já comprei
minha passagem para o mesmo horário que a sua. Precisamos continuar a história
que começou aqui. Eu quero ser feliz ao seu lado!”.
E me agarrou e
me beijou e reclamou baixinho ao pé do ouvido. A cena nunca fora comum naquele
ambiente traiçoeiro.
Partimos sem
atraso e com muito entusiasmo.
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Quando
chegamos ao meu país, fomos à casa dos meus pais. Eles precisavam conhecê-la,
porque eu queria mostrá-la ao mundo inteiro!
Hoje esta bela
mulher tornou-se minha esposa e também a capa do livro que foi sucesso no
lançamento. Está aqui ao meu lado enquanto escrevo esta experiência.
Ensinei meu
idioma. Aprendi a aceitar seus costumes. Tomamos café no fim da tarde, enquanto
releio as histórias do livro para ela. São histórias inesquecíveis e repassadas
a cada dia.
O coração, que antes chorava tristeza, me
acalenta. Percebi que o amor não pode ser uma cicatriz, porque ele é vivo. Portanto,
arrisque-se onde quer que seja!
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Um comentário:
Emocionante!
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