Acordei com
uma corda no pescoço, as mãos e os pés amarrados nas extremidades da cama,
totalmente nu. Mas não me lembrara do que havia acontecido até o instante
anterior ao abrir meus olhos. Pensei por uns segundos, ainda que assustado e
impossibilitado de imaginar qualquer situação capaz de encadear naquele
estopim, mas não concatenei nenhuma coerência.
Então ouvi a
porta arranhando no chão de madeira, estava sendo aberta por alguém. Ouvia-se o
eco dos sapatos com saltos, que se chocavam contra o chão, respeitando a
regência de quem os conduzia. E virei os olhos em direção à entrada, tentando
identificar de quem se tratava, quem me visitou sem meu consentimento, já que
eu morava sozinho naquela casa há pelo menos dez anos, e não havia recebido
nenhuma visita, até então.
Era branca,
branquíssima, da cor da transparência. Olhos negros de sofrimento e os cabelos
compridos, fazendo sentido com a sua personalidade, aparentemente inabalável. Trajava
um vestido com muito tecido, rouge, sangue vivo, deixando apenas seu rosto e
suas mãos à mostra – mãos doces, era notável!
Aproximou-se
do meu rosto, invadiu-me intensamente por dentro dos meus olhos, como uma
feiticeira hipnotizadora. Não ouvia a sua respiração, apenas a minha, bem descontrolada. Passou a língua nos meus
lábios e foi arrastando sua saliva fria pela minha face quente, roçando num vai
e vem tedioso, mas arrepiante.
Voluntariamente,
afastou-se de mim, como um furacão devastador passando por uma cidade. Parou
para mexer em algo que não estava ao meu alcance visual, mas tinha som de
cristal – era uma taça. E trouxe até mim, transbordando um liquido da cor da
sua roupa. Ofereceu-me, com generosidade e brutalidade:
- Beba da
minha alma!
E isso soou
como um trovão. Permaneci imóvel. Só tive força e coragem para saber como
chamá-la, antes do primeiro gole.
- Qual é o seu
nome? E o que veio fazer aqui? Nunca a vi antes. – indaguei a moça, gaguejando
e suando mais do que nunca.
- Sou sua
inimiga, a perfeição imperfeita. Sou a carne sangrenta, trêmula e dura. Sou o
ódio disfarçado, a paz dilacerante, o desassossego perturbador. Coberta de
ironia. Banhada de loucura. Moldada com esperteza. Eu sou a paixão que veio
buscar o seu ego!
Foi quando o
mundo girou na minha cabeça, confundindo-me por completo. Não me lembrava da
última vez que ouvira o som dessa palavra.
P-A-I-X-Ã-O.
Soletrei infinitas vezes, até voltar em si e lembrar a situação que me
encontrara com aquela mulher dentro do meu quarto, o meu cárcere de solidão.
A partir da tapa
no rosto que recebi, meu coração bateu mais rápido, não queria acatar aquela provocação. Era de mais ser agredido pela aquela mão tão delicada. Foi quando
ela começou a me dizer o porquê de eu ser o escolhido para passar por aquela
flagelação. Eu tinha feito tudo errado durante a vida inteira!
- Você não se
permite conhecer a liberdade, sequer chegar à beira do abismo. Há tantas pontes
sobre o ele, todas ignoradas, todas imperceptíveis. Caminhe como se fosse voar
e, então, você notará que está passando por cima de um desses viadutos. É assim
a vida, assim sou eu, muito amiga do amor: devemos arriscar. Digo amiga porque,
vez ou outra, a gente se desentende e essas pontes racham. – disse-me tudo tão
lentamente, mas ecoava na velocidade da luz, como uma avalanche de flechas
espetando minha consciência.
Meus olhos
encheram-se d’água e não pararam até transbordar, molhando minha memória de
solidão. Eu não tivera amado nada, nem ninguém, de fato. Foram tão ásperas as
imagens que vieram até mim. Não parei nenhum instante da vida para me dedicar a
amar. Meu coração era virgem, límpido, vazio. Havia se fechado para o mundo,
usado as paredes do quarto como escudos, protegendo-me de sentimentos.
Jamais
acreditei na possibilidade do “à primeira vista”, mas só até ver a moça do
vestido cor de carmim. Fui me dando conta de que a bebida que me fora oferecido
estava adulterada, era puro fascínio. Já estava cego.
Minha visão
voltou, quando percebi meus membros livres. A mulher permanecia no cômodo,
estava despida. Só o batom chamava atenção, além da formosura do seu corpo,
naquele momento que admirei sua beleza. Ela veio em minha direção e eu me
levantei da cama. Seu cheiro lembrava flores, da época que eu brincava nos
jardins de casa. As flores que minha mãe recebia pela manhã, graças a mim. A
delicadeza dos seus movimentos me incomodava. Então abracei aquela desconhecida
muito forte, não queria deixá-la fugir. E ouvi ao pé do ouvido:
- Eu sou a mulher da sua vida!
Aquela
fantasia já havia se expirado e a mulher era de carne e osso e paixão. Eu
estava amando, que sensação nova. Ela estava certa. Eu já amava a moça sem
saber. Por isso olhei com toda a sinceridade que me cabia, invadi seu cerne por
dentro dos seus olhos e lhe disse:
- Eu sempre te
amei, fica comigo, dentro de mim. Está frio aqui fora.
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