sábado, 15 de setembro de 2012

A viagem


“Nosso relacionamento durou o suficiente”, disse Giorge com lágrimas e um sorriso esgueio, bem discreto. “Foram os dias mais intensos que vivi, estive realizado”, completou. De fato, teria sido apenas um relacionamento convencional se não envolvessem duas almas entrelaçadas. Foram sete meses calorosamente aproveitados e muitas marcas deixadas. Cicatrizes profundas que doem por dentro e realçam a aparência de um passado atormentador.

A história começa bem antes da primeira palavra trocada. Em plena sexta-feira, hora do rush, trem lotado, trabalhadores suados, cansados, desmotivados. Sentado a minha frente estava Michel e ao meu lado esquerdo, Giorge. O primeiro, a olhos vistos, enroscava-se na sua essência deprimida. Uma áurea triste, ao passo que misteriosa. Era bem novo. O segundo era decisivamente austero e vazio de alguma coisa indecifrável. Aparentava experiência de vida. Já havia os encontrado uma série de vezes seguidas, coincidência ou não.


Seus destinos confabularam um indolente encontro de olhares, isso não se imaginara.

Numa dessas viagens, Michel chorava sem barulho, porém não racionava expressões de rancor. E essa profundeza humana, o pranto, comoveu Giorge, fazendo-o se aproximar e oferecer ajuda ao rapaz consternado. Algumas pessoas ao redor, observando a situação – ou fingindo não senti-la – ignoravam e davam de ombros ao garoto.

- O que se passa com você? Vejo-lhe de longe, sua tristeza está me contagiando. Precisa de um ouvido para escutar seu desabafo? – perguntou baixinho, a ponto de eu quase não conseguir ouvi-lo.

Michel levantou a cabeça, em um ato que demorou o tempo de os olhares se encontrarem.

- Não consigo mais sofrer. Essa angústia que me impuseram é maior que eu. Minha família não me ama mais, meus amigos se afastaram. Nem mesmo eu me suporto dentro de mim. - respondeu com a voz trêmula, e voltou a chorar.

- Por que te sentes tão desprezado? Desonraste teus pais e os que estão contigo? – interrogou com um ar de dúvida, afinal estava interessado na vida do menino, a partir daquele momento.

As lágrimas caiam enquanto balançada a cabeça em sinal de negação, olhando cara a cara. Passou a mão do rosto, secando-se, e retrucou, com um pergunta pesada como um chumbo:

- O senhor deixaria de gostar de um filho que fosse homossexual?

O semblante derreteu. O queixo caiu. O olho brilhou. Não esperava tamanha franqueza numa pergunta tão incômoda.

- É... Acho que aceitaria, sim. – respondeu sem jeito e sem disfarce.

- Pois bem!  Esse é o problema que devasta minha vida. Ninguém me compreende. Quando resolvi contar, imaginei ser acolhido e apoiado pelas pessoas que tinham afeto por mim. Esse foi o retorno que obtive: fui jogado num deserto, sem água, sem comida, sem estrutura para dar um passo sequer. Não sei o que fazer...

Certamente, as circunstâncias ali nunca fora comum para o homem maduro que descobria mais um poder que detinha: solidariedade.

- Vamos lá pra casa, você pode ficar por um tempo, até sua vida guinar para o rumo certo. Não precisa se acanhar, mas também não é nenhum luxo. Poderá ficar à vontade. Moro num sobrado que pertencia a minha mãe, falecida no ano passado. Dou minha palavra, sou um homem honesto.

- Jura? Não sei como agradecê-lo. Devo meu respeito e minha admiração pela sua presteza. Muito obrigado mesmo.  Minhas condolências pelo acontecido. Prometo não passar de uma semana hospedado e arrumarei minha vida novamente. Só Deus sabe como!

Já haviam passado todas as estações, antes de descerem. Lembro-me da imagem de um homem alto, robusto, do couro branco, segurando o braço de um jovem delicado da pele preta. Saíram em direção à rua, à padaria, ao lanche, ao lar, por fim. Entraram.

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Michel morou ali por seis meses, posteriores. Resgatou sua felicidade, conseguiu um emprego e fortaleceu suas responsabilidades. Giorge, ao perceber seu amadurecimento com a convivência, permitiu que continuasse naquele lar pelo tempo que durasse. E assim aconteceu.

A rotina não mudou. Ambos acordavam cedo, trabalhavam no mesmo horário e regressavam juntos pela via férrea. Dividiam os problemas, as dívidas e as vontades. Tornaram-se grandes amigos, com uma interdependência indestrutível. Eram sinceros, eu percebia quando os via sorrindo no vagão.

Com cinco meses de idas e vindas, comecei a perceber que o menino emagrecia, enfraquecera um pouco. Mas a relação deles permanecia inabalada, íntegra. Vez ou outra se ouvia apenas suas tosses, pausando a conversa interessante que travavam. E sempre assistia aquela cena do jovem sendo levado pelo braço, ao sair do veículo, carinhosamente.

Um mês após esses dias, percebi que Giorge passou a andar sozinho, após o trabalho. Pegava o trem, ficava inquieto. Exalava preocupação. Certa vez, ouvi-lo comentar ao telefone sobre o rapaz que não estivera com ele mais. Dizia a outrem que este permanecia em casa, recuperando uma gripe forte que o acometia.

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A primeira vez que cruzei com o senhor mais velho no meu trabalho foi numa quarta-feira à noite, cerca de seis meses após a cena que me marcou, ao vê-lo disponibilizar seu braço estendido ao menino em desespero. Depois desse dia, tornou-se constante a sua presença no hospital. Quando chegava para o plantão, reparava a tristeza que o tomava por inteiro. Fazia o possível para atender o rapaz, agora debilitado, o mais rápido.

- Ele vai ter que ficar internado. Do jeito que está, é melhor ter um acompanhamento mais de perto. Ele não está nada bem. Está tomando todos aqueles remédios que devem ser tomados pontualmente? – perguntei a Giorge, agora mais perto de mim do que pudera imaginar.

Ver aquele rapaz saudável do trem daquela maneira me angustiava. Agulhas, medos, soros, oxigênios, solidão. O tempo que Michel foi mantido internado, sua saúde estabilizou, ainda que num nível inferior ao desejável para um quadro clínico saudável. Sendo assim, recebeu alta e o direito de passar seu aniversário em casa.

Comemoraram com moderação, felicidade e esperança. Sentaram-se frente a frente, muito satisfeitos com a oportunidade de estarem juntos novamente no ambiente que foi cenário de inesquecíveis lembranças. Relembravam momentos engraçados, difíceis de lidar, segredos repartidos, juras eternas. Giorge fazia cócegas em Michel, que ria com a pureza de um anjo alado.

Brincaram de adivinhar pensamentos. Giorge vendou a visão de Michel com suas mãos. Mas o menino não conseguia decifrar qualquer coisa. Revelou a resposta, então, no tom de ternura, dizendo que o amava e pensara nisso nos meses que se passaram. Retirou os dedos do seu rosto e disse:

- Vou te amar além dessa vida!

Michel não abriu mais seus olhos. Giorge tentou adivinhar o significado da lágrima que escorria do rosto pálido que esmaecia.

Ao ler uma carta que estava no bolso de Michel, Giorge percebeu que a água que rolou naquele rosto dócil fora de arrependimento. A doença que o definhou dava continuidade.

“Sinto muito, meu herói. Não tive coragem para lhe dizer o segredo que me batia com sete tapas de terra. Todas me empurrando chão abaixo. Eu adquiri um vírus mortal e inescrupuloso. Agora é você quem vai carregá-lo por culpa minha, mas essa não é a herança que deixo para ti. Viva com o amor verdadeiro que devotei em nós. Vamos nos encontrar outra vez no mesmo vagão, em direção a um lugar desconhecido. Obrigado por tudo!”


Giorge chorou com todas as forças que ainda o estruturava. Aquelas palavras demoliram-no. Afundou-se na tristeza mais e mais e mais. Dias após dias. Vidas após vidas. Queria ir de encontro ao seu companheiro.

Tivemos um único encontro, após o funeral, quando fiquei sabendo detalhadamente o que acontecera. Desde então, ele esperara a hora do embarque. A viagem estava mais perto do início do que pudera imaginar.

"ESTAÇÃO DE EMBARQUE". Leu em pensamento antes de seguir em viagem, certo dia.


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