domingo, 16 de setembro de 2012

Pau-brasil

[Dedicado ao Luã Marins]

 “Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...” Castro Alves


Mil setecentos e sofrimentos.

Recordo-me do exato momento que pisei esse solo ingrato, após dias na iminência de falir-me no porão do navio que me trouxe à força.

 Palavras de boas vindas? Ofensas e escárnio.

Cumprimentos calorosos? Apenas o chiado do couro e do ódio na minha pele-café.

Fui obrigado a seguir com meus compatriotas acorrentados, fazendo fila, em direção a uma movimentada rua da capital.

O sol reluzia mais que ouro, mas o céu estava nublado em mim.

Sem água, meu sangue na boca matava a sede.

 “Réis... réis... réis...”

Nossos corpos eram produtos disputados e nossas almas devolvidas ao limbo.

A primeira noite na fazenda foi marcante: 80 chibatadas para registrar a identidade do território. Nem os pretos velhos escaparam da crueldade que enchia de fascínio os olhos dos bichos-do-mato. As mulheres sofreram bem menos, com apenas 70 açoites. Pode parecer indiferente, mas cada lanhada feria muito mais que qualquer aparência física; era uma questão de vontade de viver e isso ninguém tinha. Ninguém!

Numa tarde, avistei o Senhor Coronel passeando com sua filha pelo jardim do casarão.

Moça bela, rosto aveludado. Não me olhou.

Descobri a ternura do encantamento e meu anseio pela aproximação foi maior. Enfrentei os riscos e, então, cheguei até ela:

“O sangue do chicote, guarde para ti,
Pois enquanto as úlceras se abrem no dorso,
Meu coração, mudo, bate no peito, morto
E, em um suspiro, posso partir.

Antes dos meus olhos tornarem-se escuridão
Ou dor pesada de um açoite
Digo-lhe, sinhá-deusa, que baila na noite:
Tu és perfeita, nuvem, clarão!

Não matam, acalentam tuas mãos.
A voz soa como uma brisa que lambe.
Atente-se ao gotejar do meu sangue
Caindo vazio e torpe no chão.

Ao dormir, querida moça, não pense tristeza,
Porque a força d’Oxúm te protege na mata.
Mas não é capaz de tirar-me da senzala
Onde rastejo a vida sem ver tua beleza.”

Imediatamente, o Coronel ordenou uma punição pela minha audácia. Mas o castigo seria bem mais que a mim.

Amarrou todos os escravos no meio, deu voz de partida aos capatazes e a dança das chibatas entrou em cena.

Sofreram por minha causa. A culpa que carrego nas cicatrizes.

O afeto – que parece divino – sumia enquanto nos maltratava.

Rezávamos para ver a lua e suas estrelas, por Euzébios e Isabels, que não viriam.

Prometi e repeti aos prantos: “ódio e não amor!”.

Até permanecer imóvel, sem significado.

Só o chão gelado da senzala aliviava, ao dormir, as dores do tronco – o pau-brasil.



* Texto inspirado no musical de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri: "Arena conta Zumbi".


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