[Dedicado ao
Luã Marins]
“Ontem plena liberdade,
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...” Castro Alves
A vontade por poder...
Hoje... cúm'lo de maldade,
Nem são livres p'ra morrer. .
Prende-os a mesma corrente
— Férrea, lúgubre serpente —
Nas roscas da escravidão.
E assim zombando da morte,
Dança a lúgubre coorte
Ao som do açoute... Irrisão!...” Castro Alves
Mil setecentos
e sofrimentos.
Recordo-me
do exato momento que pisei esse solo ingrato, após dias na iminência de
falir-me no porão do navio que me trouxe à força.
Palavras de boas vindas? Ofensas e escárnio.
Cumprimentos
calorosos? Apenas o chiado do couro e do ódio na minha pele-café.
Fui obrigado
a seguir com meus compatriotas acorrentados, fazendo fila, em direção a uma
movimentada rua da capital.
O sol
reluzia mais que ouro, mas o céu estava nublado em mim.
Sem água,
meu sangue na boca matava a sede.
“Réis... réis... réis...”
Nossos corpos
eram produtos disputados e nossas almas devolvidas ao limbo.
A primeira
noite na fazenda foi marcante: 80 chibatadas para registrar a identidade do
território. Nem os pretos velhos escaparam da crueldade que enchia de fascínio
os olhos dos bichos-do-mato. As mulheres sofreram bem menos, com apenas 70
açoites. Pode parecer indiferente, mas cada lanhada feria muito mais que
qualquer aparência física; era uma questão de vontade de viver e isso ninguém
tinha. Ninguém!
Numa tarde,
avistei o Senhor Coronel passeando com sua filha pelo jardim do casarão.
Moça bela,
rosto aveludado. Não me olhou.
Descobri a
ternura do encantamento e meu anseio pela aproximação foi maior. Enfrentei os
riscos e, então, cheguei até ela:
“O sangue do
chicote, guarde para ti,
Pois
enquanto as úlceras se abrem no dorso,
Meu coração,
mudo, bate no peito, morto
E, em um
suspiro, posso partir.
Antes dos
meus olhos tornarem-se escuridão
Ou dor
pesada de um açoite
Digo-lhe,
sinhá-deusa, que baila na noite:
Tu és perfeita,
nuvem, clarão!
Não matam,
acalentam tuas mãos.
A voz soa
como uma brisa que lambe.
Atente-se ao
gotejar do meu sangue
Caindo vazio
e torpe no chão.
Ao dormir,
querida moça, não pense tristeza,
Porque a
força d’Oxúm te protege na mata.
Mas não é
capaz de tirar-me da senzala
Onde rastejo
a vida sem ver tua beleza.”
Imediatamente, o Coronel ordenou uma punição pela minha audácia. Mas o castigo seria bem mais
que a mim.
Amarrou
todos os escravos no meio, deu voz de partida aos capatazes e a dança das
chibatas entrou em cena.
Sofreram por
minha causa. A culpa que carrego nas cicatrizes.
O afeto –
que parece divino – sumia enquanto nos maltratava.
Rezávamos
para ver a lua e suas estrelas, por Euzébios e Isabels, que não viriam.
Prometi e
repeti aos prantos: “ódio e não amor!”.
Até
permanecer imóvel, sem significado.
Só o chão
gelado da senzala aliviava, ao dormir, as dores do tronco – o pau-brasil.
* Texto inspirado no
musical de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri: "Arena conta
Zumbi".
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